terça-feira, 28 de setembro de 2010

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Murray e a concha para feijão

Como muitos por aí nasceu sem ser desejado. Sem nome, sem casa, sem dono. Cresceu nas ruas, perambulava de um lado pra outro em busca da comida do dia. Um dia tudo mudou... Foi atropelado por um Del Rey velho dirigido por um animal humano sem coração. Isso é que é azar... Resultado: lesão no nervo, insensibilidade na parte traseira, perda de controle de urina e fezes.


A história do Murray começou nesse momento. Sim, ironicamente sua história teve início com um atropelamento. Atropelado, foi resgatado. Resgatado, foi visto por uma "protelouca" que se apaixonou pelo seu olhar. Alguém suficientemente biruta pra colocá-lo no carro e levá-lo para casa. Essa biruta tem um pai que inventa coisas. E não é que uma concha para feijão se transformou num chinelo pro Murray? Chinelo que ele usa durante o dia pra poder andar e correr sem machucar sua pata, como se fosse um cão normal.



Essa é uma das diferenças entre os animais não humanos e a maioria dos animais humanos: eles não esperam por piedade, não se fazem de vítimas, vão em frente e continuam vivendo, superando suas limitações. Ele teve um nome, casa, donos, comida, cama, amigos cães, espaço pra andar, correr, amor e carinho. Não precisa nem dizer como ele retribuiu isso, quem conhece os cães já sabe. Quem não sabe talvez deva tentar descobrir...

Murray viveu bem, dentro das suas possibilidades, claro. Banhos regulares, quase diários, eram necessários. Ficou forte, começou a mexer o rabo, coisa que não fazia. Comeu seu chinelinho, depois de meses de uso. Neste dia nos mostrou que não mais precisava dele. Ele nos deixou muito cedo, era ainda muito jovem. Seu último mês de vida foi bem difícil. Sua pata traseira estava muito inchada, os antibióticos não faziam mais efeito e ele começou a emagrecer... O Dr. Gustavo estava tentando mantê-lo com alguns remédios, mas tudo caminhava para uma amputação. Eu não queria, pois tinha medo de ele passar por cirurgias, por causa do atropelamento e de todos os seus problemas. Sexta- feira ele estava bem, comeu as bolachinhas matinais, talos de couve no almoço, mas no final da tarde deu uma caída. Sábado de manhã não quis sair da casinha e estava tremendo. Meus pais o colocaram num quarto com panos e uma lâmpada pra se aquecer, mas ele se foi antes mesmo de eu conseguir chegar.


Murray foi enterrado ao lado da Misha, bem perto do local em que ele mais gostava de ficar - perto da porta da cozinha, onde ficava esperando meu pai sair pra segui-lo o tempo todo...

domingo, 5 de setembro de 2010

Happy Birthday Scott Bullet

Eu nunca pensei que viveria uma história como esta. Ir e voltar de Tatuí virou rotina. Passei a fazer o trajeto de 137 km entre as minhas “casas” todo fim de semana. Já nem olhava mais a paisagem, apenas dirigia. Era um sábado, fim de semana prolongado, dia 5 de setembro de 2009. Este ano foi premiado. Muitos animais, histórias, a loja virtual, um estatuto encantado que nunca era aprovado, zilhões de bernes e um CNPJ, que parecia impossível, no penúltimo dia do ano.


Mas 5 de setembro foi um dia e tanto. Lembro-me de ter passado o shopping no km 72 da rodovia Castello Branco. Não consigo precisar em que quilômetro vi o cão que eu chamaria de Scott. Estava na faixa da esquerda, no limite de velocidade. Era perto da hora do almoço. Havia muitos carros na estrada, por causa do feriado da Independência. Eu o vi, uma cabecinha amarela na valeta de escoamento de água do canteiro central da rodovia. Olhando pra mim, como se fosse nos meus olhos. Dei seta e parei um pouco a frente, já que tinha visto a cabecinha de longe. Dei ré com o carro no acostamento. Oswaldinho estava no carro comigo. Tinha medo de abrir a porta e ele escapar, mas não podia deixar de ver o que estava acontecendo. Protelouca tem que parar pra ver, não pode ir pro shopping fazer compras como as outras pessoas normais... Eu cheguei perto já munida da minha guia da sorte. Lacei muitos cães com ela, poderia laçar mais um. Nunca se tem um cambão no carro. Nunca se consegue ajuda. Quantos viram o cão? Quantos viram o meu carro parado e o cão? Ninguém ajuda. As proteloucas não correspondem a uma porcentagem expressiva da população. O cão seria disputado a tapas na recepção da clínica do Dr. Gustavo, onde as proteloucas se encontram e dividem até os lugares nos sofás, pra desespero dele. Eu cheguei perto dele, ele me olhou, estava preparada pra levar umas mordidas de um cão com dor. Foi aí que vi a fratura exposta numa pata traseira. Passei a guia em volta do pescoço e ele não esboçou reação. Não pensei duas vezes, eu o peguei no colo. Só me lembro do seu olhar triste. Eu o coloquei no banco traseiro do carro, junto com Oswaldinho. Entrei no carro e fui em frente. Não consigo me lembrar exatamente do local. Apaguei as lembranças após o resgate. Só me recordo de ter passado em Boituva antes de chegar em Tatuí. Uma das melhores coisas do ano estava lá me esperando já sabendo do cão supostamente atropelado. Não me entendam mal, disse uma das melhores coisas por ter encontrado uma pessoa com um enorme coração e extremamente determinada em fazer os mutirões de castração. Finalmente, dentre as inúmeras vezes que expliquei toda a logística dos mutirões, consegui encontrar alguém que pensasse como eu. E que estivesse disposto a “perder” seu tempo lutando pelos animais. Esta é a nossa voluntária em Boituva, Fabiana.


E aí vinha a pior parte. Chegar em Tatuí com mais um. Meus pais gostam de animais, mas existe um limite. Eu sei disso, mas os que eu poderia fazer? Deixá-lo lá? Não conseguiria. Já pensei em não mais sair de casa, mas mesmo assim eles me encontram. Gatos caem na minha cabeça. Cães amanhecem na minha porta. É um problema.


Cheguei lá, o deixei na garagem. Ele bebeu água e comeu muito. Nem precisava de carne ou algo mais apetitoso. Ração seca era suficiente. O que fazer? Os veterinários de Tatuí trabalham até as 12h. Era bem mais tarde. Apliquei uma dose de antibiótico e o deixei seguro. Segunda-feira eu o levei para São Paulo. Terça-feira estava na clínica do Dr. Gustavo. Ele e a Dra. Viviane pediram o primeiro raio-X de vários que ele faria. Além da fratura exposta existia uma fratura numa pata dianteira. E apareceram as primeiras marcas estranhas no raio-X. A veterinária do laboratório estranhou. Eram pedaços de metal. Mais tarde, quando Scott já estava internado na clínica do Dr. Pedro, mais próximo da minha casa e que o encaminharia para um ortopedista, soubemos o que eram estes pedaços de metal. Eram balas. Algo próximo a calibre 22. Ele não tinha sinais de atropelamento, o Dr. Pedro observou isso. Apenas as fraturas, nada de outros machucados. Scott tinha sido baleado e não atropelado. Como ele foi parar no canteiro central da rodovia é algo que eu nunca vou saber. Andando ele não foi. Se arrastando? Pouco provável, pois o fluxo de automóveis era enorme. Teria virado patê.

Scott foi operado alguns dias depois. Gastaram 4,5h pra tentar salvar a pata com a fratura exposta. A fratura na parte dianteira não foi operada. Não dava pra mantê-lo mais tempo na anestesia. A princípio outra cirurgia seria feita, mais tarde. Esta cirurgia nunca aconteceu e a Natureza calcificou esta fratura. Torto, mas calcificou. Após a cirurgia o aspecto da pata não era bom, os fixadores não ajudavam. Confesso que não gostei. Eu entendo que no dia da cirurgia descobriram que ele ainda tinha uma luxação coxo-femural. Ou seja, quem o maltratou deu um jeito de inutilizar ¾ das patas do animal. Era preciso tentar de tudo pra conseguir 3 patas funcionando. Tudo indicava que Scott tenha sido espancado e baleado. Teria sido usado como alvo? Divertimento? Teria sido jogado depois de toda a diversão? Eu queria saber. Queria descontar todo o mal que fizeram a esse cão. Nunca saberei quem foi e nunca vou conseguir vingança. Apenas pude jogar meia dúzia de pragas pra quem quer que tenha feito isso. Só posso garantir que ninguém mais o fará sofrer.



Scott ficou internado uns 3 meses. A conta ficou um absurdo: mais de R$3000. Ele tomava 6 comprimidos pela manhã e a mesma quantidade 12h depois. Tomou remédios para tudo: dor, infecção, estômago, etc. Foi muito bem cuidado enquanto esteve internado na clínica do Dr. Pedro. Não posso dizer outra coisa. A cirurgia é que não ficou nada boa. A calcificação não ocorria como esperado. Os fixadores foram retirados, uma tala foi feita. Mesmo assim, a cada raio-X a esperança de ver aquela pata inteira novamente ia por água abaixo. A cada raio-X de alguma outra parte também apareciam mais balas. Acredito que, das partes radiografadas, poderíamos extrair 6 balas.

Eu já estava perdendo as esperanças. Não achava que ele voltaria a andar. Embora tenha contado com a ajuda de pessoas maravilhosas, o valor do tratamento tirava meu sono. Um dia fui visitá-lo. Já não o fazia com a mesma freqüência, pois estava trabalhando muito. O Dr. Pedro o trouxe até a recepção, algo que nunca aconteceu. Scott foi colocado no chão e andou! Caiu depois de uns passos, mas andou. Ganhei o dia. Fui pra casa nas nuvens. Alguns dias depois eu o levei pra Tatuí, ficaria no canil com a tala até calcificar. Fiz filmes dele e coloquei no YouTube. Quando passou o efeito dos hormônios liberados em meu corpo pela felicidade de tê-lo visto andar novamente, mandei a notícia para os que o haviam ajudado.

Quase três semanas depois eu o levei de volta para São Paulo. A tala foi trocada. Ficar muito tempo com uma tala é ruim. Não há ventilação, em alguns pontos ela o machucava. Achei que em mais uns 15 dias estaria bom. Quando o cheiro começou a piorar eu a tirei. Havia um pequeno furo perto da articulação que vazava água com sangue. Scott estava tomando apenas antibiótico natural, pois o excesso de remédios o fez vomitar sangue. Aquele furo virou uma pequena bicheira. De um dia pro outro, você descuida e lá estão eles fazendo a festa. Limpei e retirei 14 larvas. 2009 foi o ano das larvas no calendário canino...

Uns dias depois vi uma saliência no joelho da pata operada. Apertei e ela sumiu. Logo imaginei que era o pino que estava dentro do osso. O que entendi é que este pino ficaria dançando lá dentro quando fosse o momento de sua retirada, já que sua função estaria completa, que era permitir a calcificação. Umas 3 horas depois o pino já tinha rasgado a pele do joelho e estava pra fora. E havia sangue. Eu o levei para o Dr. Milton, o único veterinário de Tatuí em quem confio. Scott foi sedado e o pino retirado. Aproveitando a anestesia pedi que ele fosse castrado. O raio-X não foi o que esperávamos. Havia uma degeneração de toda a região. Osteomielite, infecção no osso. Eu sabia que a amputação ia ser necessária. Queria acreditar que não, mas aquela pata pendurada, a água com sangue, aquilo não era bom. O Dr. Gustavo confirmou. Amputação, antes que esta infecção se espalhe e seja tarde demais. Com 3 ou 4 patas eu vou continuar amando o Scott, mas o sentimento é de derrota. Tantos cuidados, tanta ajuda com o tratamento pra manter a pata, que ele poderia vir a usar no futuro. E a solução seria arrancá-la, antes que pusesse a vida do cão em perigo. Mas eu confio muito no Drs. Gustavo e Viviane, ainda mais depois de tantos mutirões e de todos os animais que eu consultei com eles. E no meu íntimo eu sabia que isso seria necessário, não queria aceitar, mas sabia.

Scott renasceu após a amputação. O Dr. Gustavo tinha razão quando disse isso durante a cirurgia. Diferentemente dos seres humanos que esperam por piedade, Scott é feliz e não se importa.